Compostos de cannabis podem tratar diversos sintomas | Foto: Freepik
O termo “cannabis medicinal” representa uma série de produtos que contêm em sua composição substâncias extraídas de plantas do gênero cannabis, sendo as principais: Cannabis sativa e Cannabis indica. Os compostos são chamados coletivamente de canabinoides.
A Cannabis sativa é popularmente conhecida como maconha, mas é importante esclarecer que este termo se refere à droga obtida a partir da planta para fins recreativos. Diferentemente da maconha, os produtos à base de cannabis são produzidos em laboratórios por meio de processos que eliminam compostos tóxicos, purificam as substâncias e as manipulam conforme a prescrição clínica.
Os estudos sobre os compostos da cannabis começaram no século XIX, mas seu uso medicinal, segundo historiadores, ocorre desde o antigo Império Chinês, por volta de 2.737 a.C.. Ao longo dos anos, as pesquisas aprimoraram os usos medicinais das plantas e produtos passaram a ser fabricados com o objetivo de auxiliar no tratamento de doenças, principalmente, no âmbito neurológico e no controle de dores crônicas.
De acordo com a médica neurologista e neurofisiologista Maria Teresa Castilho Garcia, prescritora de cannabis medicinal em Presidente Prudente (SP), os produtos com substâncias extraídas do gênero começaram a ser utilizados no tratamento de pacientes oncológicos.
“A cannabis tem inúmeros compostos e as características que descobriram dos compostos não são de agora, são uma coisa muito antiga, e, com o tempo, foram vendo que existem vários compostos que têm propriedades medicinais. Inicialmente, ela era utilizada para tratar pacientes oncológicos, porque ela ajudava na dor, ajudava a melhorar alguns sintomas, como, por exemplo, náuseas, vômitos, perda de apetite que esses pacientes tinham, então, a partir daí, foram descobrindo todas essas propriedades. Existem vários tipos de cannabis, e o canabidiol [CBD] foi um dos compostos que foram extraídos e que deram muito certo, porque o canabidiol começou a ser empregado para vários tipos de doenças”, conta ela ao Portal CBN Prudente.
A médica explica que os dois principais compostos extraídos da planta Cannabis sativa são o CBD e o tetrahidrocanabinol (THC).
“A gente tem o extrato de cannabis e o canabidiol, que é feito de forma industrializada, que a partir de vários estudos se começaram a tentar purificar a planta Cannabis sativa. Foram sendo extraídas dessa planta várias substâncias. A gente tem mais de 30 compostos que têm funções terapêuticas. As duas principais substâncias são o CBD e o THC. Essas são duas substâncias que são psicoativas e são industrializadas em composições e concentrações diferentes”, detalha a médica.
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), há apenas um medicamento de cannabis registrado no Brasil. Trata-se do Mevatyl, indicado para tratar sintomas de pacientes adultos que apresentam espasmos de moderados a graves decorrentes da Esclerose Múltipla.
“É importante destacar que medicamento de cannabis e produtos de cannabis são coisas distintas. Medicamento é um produto feito seguindo todo o rito de desenvolvimento de medicamentos, incluindo estudos clínicos para definição de segurança e eficácia. Já os produtos de cannabis têm indicações terapêuticas, mas não são medicamentos. Por isso, os produtos de cannabis não têm indicações aprovadas e a avaliação sobre seu uso deve ser feita pelo profissional de saúde de acordo com o quadro de cada paciente”, afirma a Anvisa com exclusividade ao Portal CBN Prudente.
O sistema da agência aponta 36 produtos de cannabis autorizados. A norma da Anvisa que regulamenta o tema é a Resolução de Diretoria (RDC) 327/2019.
“A RDC nº 327 foi criada pois, mesmo havendo promissoras pesquisas no sentido da consolidação da eficácia e da segurança dos produtos derivados da cannabis, no momento que a regulamentação foi feita, a comprovação científica total desses atributos ainda não se confirmou para a grande maioria deles, no que diz respeito às variadas indicações de uso. Ou seja, são produtos que não conseguiriam atender os requisitos técnicos exigidos para medicamentos”, pontua a agência.
“Os produtos de cannabis não precisam apresentar estudos clínicos para comprovação de eficácia e segurança. Porém, a regra exige que o fabricante seja produtor de medicamentos, dotado de Certificado de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos. [Ainda] de acordo com a RDC 327/2019, os produtos de cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro e o médico prescritor deve apoiar-se em dados técnicos capazes de sugerir que essa alternativa pode ser eficaz e segura. A indicação e forma de uso dos produtos de cannabis são de responsabilidade do médico”, esclarece a Anvisa.
Segundo a médica neurologista e neurofisiologista, as formas de consumo terapêuticos apresentadas pela indústria farmacêutica são variadas.
“A gente tem a pasta do canabidiol, que foi uma das primeiras que foram mencionadas e liberadas para comercialização. A gente tem o óleo do canabidiol, tem gotas, solução oral, que é vendida já em farmácias, depois que a Anvisa liberou essa comercialização dentro do Brasil”, afirma Maria Teresa.
Conforme a RDC 327/2019, da Anvisa, os produtos contendo como ativos exclusivamente derivados vegetais ou fitofármacos da Cannabis sativa devem possuir, predominantemente, CBD, e não mais que 0,2% de THC. Eles podem conter teor de THC acima de 0,2% desde que sejam destinados a cuidados paliativos exclusivamente para pacientes sem outras alternativas terapêuticas e em situações clínicas irreversíveis ou terminais.
Ainda de acordo com a RDC, os produtos de cannabis são autorizados para utilização apenas por via oral ou nasal. Além disso, é vedada a manipulação de fórmulas magistrais contendo derivados ou fitofármacos à base de cannabis.
A médica reforça que a prescrição dos produtos deve ser feita apenas para os casos em que já existem estudos sobre a eficácia e os efeitos colaterais no tratamento da doença em questão.
“O canabidiol começou a ser testado para inúmeras doenças. Até a gente teve, em um determinado momento, uma intervenção do Conselho Federal de Medicina [CFM] no sentido de proibir a prescrição discriminada do canabidiol. Depois essa resolução foi revogada, mas o canabidiol passou a ser de receita branca carbonada para receita azul, então, a gente procura usar para as doenças que já sabidamente têm estudos que mostraram algum benefício com o canabidiol”, afirma a médica.
Ela cita exemplos dos principais casos em que produtos com CBD têm sido utilizados.
“Na área neurológica, por exemplo, existem muitos estudos de epilepsia refratária tratada com canabidiol. Algumas síndromes epilépticas refratárias têm benefício com o canabidiol. [...] O canabidiol pode ser utilizado para tratar pacientes que têm Transtorno do Espectro Autista, que têm alterações comportamentais, como agressividade, ansiedade, estereotipia e dificuldade no sono. E, também, veio com maior intensidade agora para doenças psiquiátricas, para essa parte de transtorno de humor, ansiedade. [...] Ele tem sido utilizado também em algumas condições de doenças neurológicas que provocam muita rigidez, por exemplo, pacientes com Esclerose Múltipla, com AVC [Acidente Vascular Cerebral], que evoluíram com sequela de um membro muito rígido e isso provoca dor, espasmos, e aí o canabidiol pode ser empregado nesse sentido, para aliviar os sintomas dessas doenças”, esclarece a neurologista.
Os efeitos colaterais das substâncias dependem da concentração e do organismo de cada paciente, explica Maria Teresa. Os produtos são manipulados e as doses, aplicadas conforme a avaliação médica para a doença em questão.
“A gente fala de substâncias psicoativas, então, dependendo da concentração do que a gente usa, vamos ter efeitos mais ou menos intensos. E a gente também sabe que existem efeitos colaterais, então, às vezes, a gente utiliza para tratar, por exemplo, epilepsia, ou a gente utiliza para tratar sintomas comportamentais do autismo, ou a gente utiliza para tratar ansiedade, para tratar dor crônica, estou citando aqui alguns empregos que [os produtos] têm sido mais utilizados hoje em dia, mas tem pacientes que evoluem, muitas vezes, com quadros comportamentais de psicose, de delírios, de alucinações, e a gente sabe que essas substâncias podem causar um quadro de dependência física ou psicológica”, explica ela.
“Tem pacientes que tomam canabidiol, por exemplo, e usam para dormir. Tem outras pessoas que perdem o sono, que têm insônia tomando. Então, é importante entender que não dá para ter o uso indiscriminado desse tipo de produto. A gente tem de saber para quais situações indicar, qual é a concentração, qual é o tipo de substância que eu vou indicar, se é mais CBD, se é mais THC. Conhecer os efeitos colaterais de cada um [desses produtos] para que o paciente tenha o benefício, e saber que o canabidiol não é indicado para qualquer coisa”, reforça a especialista.
A neurologista e neurofisiologista salienta que o sistema neurológico de cada pessoa pode reagir de maneiras diferentes às substâncias psicoativas.
“Depende um pouco dos receptores endocanabinoides que a gente tem no cérebro, então, tem algumas pessoas que tendem a ter muito mais efeitos colaterais negativos e outras pessoas que tendem a ter [uma] maior adaptação e efeitos benéficos. Isso já foi bastante estudado à medida que foram conhecendo, descobrindo com as pesquisas, todos os receptores que a gente tem endocanabinoides do sistema nervoso central”, descreve ela.
De acordo com a especialista, qualquer médico no Brasil pode prescrever cannabis medicinal.
“No Brasil, a pessoa sendo médica e tendo um [registro no] CRM [Conselho Regional de Medicina] ativo, ela pode prescrever canabidiol. Mas é importante que os pacientes saibam que o canabidiol não é simplesmente um composto nutricional, um suplemento, ele é uma substância como qualquer outra que pode dar efeitos benéficos, como efeitos também mais danosos, e que a pessoa precisa ir em um especialista para que ela seja adequadamente orientada a respeito dos benefícios e das complicações”, enfatiza a neurologista.
Segundo o Conselho Federal de Medicina, em 2022, foi aprovada a Resolução 2.324/2022, que estabelecia que médicos podiam indicar a medicação, limitando o ato a psiquiatras, neurologistas, neuropediatras e neurocirurgiões, para o tratamento das epilepsias na infância e na adolescência, além da Síndrome de Dravet, Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa.
No entanto, atualmente, a norma está suspensa para atualização. De acordo com o 1º vice-presidente do CFM e membro da Câmara Técnica de Psiquiatria do conselho, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, a resolução deverá ser atualizada e aprovada ainda neste ano.
Ainda conforme o CFM, a regulamentação da prescrição é definida pela Anvisa, que autoriza a indicação a qualquer médico, independente da especialidade. A única restrição, de acordo com o diretor do CFM, diz respeito à exigência de formulário de prescrição azul para o canabidiol e o receituário amarelo para formulações que possuem o canabidiol e o tetrahidrocanabinol.
O CFM explica ainda que os tipos de receitas médicas são definidos pelo Regulamento Técnico das substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, estabelecido pela Portaria 344, de 1998, do Ministério da Saúde. O texto da norma lista os tipos de documentos, de acordo com o medicamento:
a) Entorpecentes (cor amarela);
b) Psicotrópicos (cor azul) e
c) Retinóides de uso sistêmico e imunossupressores (cor branca).
A cannabis medicinal foi regulamentada no Brasil pela Anvisa em 2015. Em 2019, a agência liberou a venda de produtos derivados de cannabis nas farmácias, a partir de receita preenchida e assinada pelo médico.
Em 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu as propriedades terapêuticas da cannabis e a retirou da lista de substâncias perigosas.
A Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo começou a dispensação, desde o final de junho de 2024, de produtos à base de canabidiol para os pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o território paulista. Os itens são destinados a pacientes diagnosticados com as síndromes de Dravet e de Lennox-Gastaut, e complexo da esclerose tuberosa.
De acordo com a pasta, para ter acesso ao produto, o paciente deve comparecer a uma das 40 Farmácias de Medicamentos Especializados (FMEs) do Estado com o formulário de indicação preenchido pelo médico. Também deverão ser apresentados os resultados dos exames complementares listados na resolução. Os produtos à base de canabidiol estão disponíveis em todas as farmácias especializadas do SUS.
"A pasta reforça que tem se empenhado diariamente no desenvolvimento das ações referentes às diretrizes previstas no protocolo de disponibilização de produtos à base de canabidiol, como a educação continuada e a publicação do guia de orientações para o acesso. A secretaria tem como objetivo ampliar e agilizar o acesso aos medicamentos para que os pacientes que sofrem das doenças mencionadas não sejam desassistidos e/ou permaneçam sem assistência médica", enfatiza o órgão estadual ao Portal CBN Prudente por meio de nota.
Para que uma tecnologia em saúde seja incorporada no SUS, é necessário que ela seja avaliada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), de acordo com o Ministério da Saúde.
"A Comissão atua sempre que demandada e assessora o Ministério da Saúde nas decisões sobre a incorporação ou exclusão de tecnologias no SUS. Quando provocada, a Comissão analisa as evidências científicas relacionadas à tecnologia, considerando aspectos como eficácia, acurácia, efetividade e a segurança, além da avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já existentes e o seu impacto orçamentário para o SUS", diz o Ministério da Saúde ao Portal CBN Prudente.
Ainda de acordo com a pasta, "os estados e municípios têm autonomia para a incorporação e oferta de produtos, visando a melhor assistência à saúde".
Ao se cogitar a prescrição de produtos de cannabis, o especialista precisa levar em consideração os remédios que o paciente já utiliza, pois podem ocorrer interações medicamentosas.
“O canabidiol tem interação com algumas medicações, isso também já tem muitos estudos. O canabidiol é metabolizado no fígado, como várias outras medicações, muitas medicações que a gente tem disponíveis, e a gente precisa, então, fazer todo um rastreio, uma triagem do que o paciente já toma para a gente tentar minimizar essas interações medicamentosas. Por exemplo, o paciente que já toma algumas medicações para epilepsia, a gente sabe que o canabidiol pode interagir com medicações de tarja preta, então, a gente sabe que isso potencializa muito mais sonolência, é aquele paciente que tende a ficar muito prostrado, sonolento, e, isso pode acontecer de interação com outras medicações controladas que [ele] toma. É importante conhecer cada uma das drogas que o paciente já toma, conhecer os efeitos colaterais, saber se tem alguma comorbidade que possa despertar essa tendência a ter mais efeitos colaterais, para ter um tratamento mais seguro”, alerta a neurologista e neurofisiologista Maria Teresa Castilho Garcia.
Ela comenta que a introdução é feita de forma gradual, a fim de identificar os efeitos colaterais.
“A gente tem uma dosagem que a gente coloca, quantidade de miligrama por quilo, e, dentro dessa faixa terapêutica, a gente vai colocando aos poucos. A gente vai sempre tateando a dose, não fazendo subidas muito rápidas, e assim a gente vai conseguindo identificar possíveis efeitos colaterais, e também identificando se o nosso objetivo de controlar aquela determinada situação, determinado sintoma, doença, se aquilo começou a ter alguma resposta terapêutica”, detalha a especialista.
Após um período de uso do produto, se necessário, as doses são ajustadas conforme a evolução ou piora do quadro.
“A gente tem de sempre fazer um ajuste de dose progressivamente, mas o paciente, se ele estiver se beneficiando, ele pode tomar [durante bastante tempo]. É um produto que pode ser usado a longo prazo, mas a gente sempre tem de ir avaliando e colocando na balança o risco e o benefício, e o que a gente está trazendo de melhora na condição daquele paciente”, destaca ela.
Em relação à plantação de cannabis, a médica afirma que não há coerência em cultivar a planta para tentar extrair produtos medicinais.
“Plantar cannabis em casa para tentar extrair alguma coisa que seja medicinal é uma coisa descabida. A maconha é uma substância que não é purificada, tem inúmeros compostos canabinoides dentro da maconha, e na maconha, inclusive, acabam vindo substâncias tóxicas também. Não é a mesma coisa, não chega nem perto do que se faz em processo de laboratório para extrair os compostos purificados, então, é importante entender que plantar em casa não vai ter o mesmo efeito que a pessoa comprar na farmácia”, esclarece.
A especialista ressalta a importância da avaliação profissional em cada situação para a prescrição de produtos à base de cannabis. Ela cita como exemplo a Doença de Alzheimer, esclarecendo que esses medicamentos não retardam a progressão do quadro, mas podem auxiliar no controle de sintomas mais graves.
“Hoje o ‘boom’ de pacientes que vêm solicitando o canabidiol é para a Doença de Alzheimer. Então, a gente tem de explicar que ele não é um tratamento da doença, que ele pode ajudar em alguns sintomas. Eu acho que a situação maior aqui são as pessoas conhecerem realmente o que ele pode fazer. [...] A gente vai avaliar cada caso. É importante a gente informar o paciente para ele saber que, às vezes, o caso dele não vai ser o canabidiol. [...] A gente precisa individualizar cada caso”, conclui a neurologista e neurofisiologista.